Foto: Marcos Pizano |
Para começar, o próprio nome — Letras — revela um apego a
concepções de educação e de formação de cidadãos (no masculino mesmo) que
vigoravam no século XIX e que, depois de tantas revoluções ocorridas nas
ciências e nas sociedades humanas, não tem mais nenhuma justificação séria para
continuar existindo. É deprimente saber que a pessoa que conquistou uma vaga
num curso de Letras vai ingressar numa estrutura acadêmica obsoleta,
anacrônica, que foi delineada há pelo menos duzentos anos.
O estudo das “Letras” ou das “Belas Letras”, como também
se dizia, era regido por ideias e ideais muito elitistas, aristocráticos (além
de sexistas, já que as mulheres não estavam incluídas neles), por critérios
antiquados de elegância e bom gosto, o que fica evidente já pelo uso do
adjetivo “belas”. O que se cultivava e cultuava nas “Belas Letras” era uma
literatura clássica, toda composta de autores devidamente mortos e
enterrados: só merecia estudo a “grande” prosa, a
“grande” poesia, a “grande” dramaturgia... Literatura oral? Nem pensar!
Literatura alternativa, marginal, transgressora? Deus nos livre! Literatura
escrita por mulher? Imagine! Desde quando as mulheres escrevem coisa séria?
Literatura de autor vivo? De jeito nenhum: era preciso
que ele fosse devidamente “imortalizado” pelas Academias de Letras (que não têm
esse nome por acaso, já que também são instituições elitistas, anacrônicas e
obsoletas). No que dizia respeito às línguas, o espírito (ou o
fantasma?) era o mesmo.
Só eram estudadas as línguas “clássicas” (o latim, o
latim e principalmente o latim... o grego, só para os gênios mais ousados), as
línguas modernas mais prestigiadas (o francês, o francês e principalmente o
francês...) e, no tocante ao português, única e exclusivamente a língua
considerada “correta”, “pura” e “elegante”, sempre colhida da obra daqueles
mesmos “grandes” escritores. Com isso, o ciclo se fechava sem nenhum atrito nem aperto: “literatura” era só um conjunto seleto de obras
que, por sua vez, eram escritas num modelo muito restrito de “língua correta”
que, por sua vez, era a única manifestação merecedora do rótulo de “língua
portuguesa”.
Daí o nome de “Letras”: só o que era escrito, e escrito
por poucos, era objeto de estudo.
A Faculdade de Letras de Paris, por exemplo, oferecia os
seguintes cursos quando foi criada, em 1808: Literatura Grega; Eloquência
Latina; Poesia Latina; Eloquência Francesa; Poesia Francesa. Precisa de
comentários?
No que diz respeito ao estudo do português, é preciso
lembrar que a inclusão da língua portuguesa como disciplina curricular (nas escolas
e nas faculdades) só ocorreu no Brasil nas últmas décadas do
século XIX, já no final do Império. Tratado exclusivamente em sua vertente
literária consagrada, o português era estudado com a mesma metodologia
empregada para o estudo das línguas mortas: dissecado em frases soltas, por sua
vez dissecadas em seus elementos constitutivos que eram devidamente rotulados
de acordo com as classificações herdadas da gramática grega e latina.
Tarefas como fazer a análise sintática de estrofes d’Os
Lusíadas ou do Hino Nacional Brasileiro eram o padrão. Qualquer semelhança com
a autópsia de um cadáver não é mera coincidência! Não espanta o horror que as
“aulas de português” provocavam (e ainda provocam) em tanta gente.
Com o surgimento da ciência linguística moderna, no
início do século XX, poderíamos imaginar que uma grande revolução abalaria essa
arquitetura aristocrática, derrubando os velhos templos beletristas
neoclássicos, mofados e insalubres, para, no lugar deles, se erguerem edifícios
arejados, iluminados, funcionais, onde a ciência poderia transitar à vontade.
Nada disso, porém, aconteceu. A disciplina chamada Linguística só foi
incorporada ao currículo oficial dos cursos de Letras no Brasil no ano de 1961.
Quando a Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo foi criada, em 1934,
um dos formuladores do currículo escreveu que era preciso ensinar português
correto aos brasileiros porque falavam muito mal a língua. Está lá, nos
registros. E é com esse espírito colonizado que a grande maioria dos nossos
cursos de Letras vive até hoje. Basta conversar com alguns docentes mais
antigos da UnB para verificar isso.
Os estudos científicos foram sendo incorporados aos
cursos de Letras no Brasil de maneira desordenada, sem planejamento curricular
adequado, simplesmente com o acréscimo de uma disciplina aqui, outra ali, mais
algumas acolá. Não é por outra razão que o nome do curso permaneceu intacto,
mesmo com a anexação de disciplinas provenientes de perspectivas científicas
mais atualizadas. Se a gente investigar a lista das unidades acadêmicas das
grandes universidades brasileiras, vai topar sempre, em todas elas, com alguma
coisa do tipo Faculdade de Letras ou Instituto de Letras. Exceção digna de nota
é o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp (Universidade Estadual
de Campinas), e seu caráter excepcional se deve, entre outras coisas, ao ano de
sua criação (1976), no âmbito de um projeto universitário inovador para a
época. Mesmo assim, o IEL oferece atualmente uma graduação em... Letras!
Em vez de se promover a implosão do curso de Letras,
totalmente inadequado para abrigar as novas concepções científicas do século
XX, o que se promoveu foram “puxadinhos”, como muitas pessoas costumam fazer em
suas casas: para não ter de derrubar um imóvel e reconstruí-lo
de maneira a torná-lo adequado aos fins que se deseja para ele, vai se
construindo novos cômodos e anexando eles na casa já existente. Assim, os
cursos de Letras começaram a se tornar o que são até hoje: verdadeiros
Frankensteins acadêmicos.
Muitos dos profissionais que atuam nos cursos de Letras
parecem se negar (consciente ou inconscientemente) a admitir que a vocação
natural do curso é a formação de docentes de português e/ou de línguas
estrangeiras, numa recusa que se contrapõe às diretrizes do próprio Ministério
da Educação no que diz respeito à formação docente. Os mestres e doutores que
professam nas Letras se comportam como se estivessem ali para formar grandes
escritores e críticos literários, ou filólogos e gramáticos do perfil mais
tradicional possível. Alguns poucos, bem intencionados, mas iludidos, acreditam
que vão formar futuros linguistas, pesquisadores sintonizados com a ciência
moderna. Com isso, somos obrigados a ministrar, como professores, e a cursar,
como estudantes, disciplinas totalmente irrelevantes para a formação docente e,
ao mesmo tempo, deixamos de lado todo um conjunto de teorias e práticas que são
de primeiríssima necessidade para que alguém que se forme em “Letras” possa
trabalhar em conexão com o que se espera, hoje, de um professor de língua.
Aqui na UnB, por exemplo, muitas das disciplinas de
sintaxe são dadas exclusivamente na perspectiva do gerativismo chomskiano, uma
teoria linguística que, por mais interessante que seja do ponto de vista
filosófico, não tem contribuição nenhuma a dar para alguém que, saindo da
universidade, vai ter que enfrentar a prática da sala de aula. A tentativa que
se fez, nos anos 1970, de aplicar o gerativismo ao ensino de português foi um
estrondoso desastre. Valeria mais a pena usar esse precioso tempo de formação
para o estudo aprofundado e crítico da tradição gramatical, que ainda domina
com muito vigor o imaginário social acerca de língua e linguagem. O resultado é
que as pessoas se formam em Letras sem dominar a teoria gerativa (o que, aliás,
é impossível porque seu fundador destrói e reconstrói regularmente a teoria a
cada tantos anos...) e sem conhecer a tradição gramatical (o que seria
importantíssimo), mas somente um conjunto de afirmações pejorativas a respeito
dela, que em nada contribuem para a formação de quem vai ter que lidar com a
gramática em sua vida profissional.
Em contrapartida, aqui e em praticamente todos os cursos
de Letras, milhares de estudantes saem da universidade sem sequer ter ouvido
falar (ou tendo ouvido falar muito vagamente) de gramaticalização, pragmática,
discurso, letramento, gênero textual, enunciação, sociocognitivismo,
sociointeracionismo, sociologia da linguagem, políticas linguísticas,
crioulização, diglossia, teorias da leitura, relações fala/escrita... áreas de
pesquisa e de ação fundamentais para que se tenha uma visão coerente do que é
uma língua e do que significa ensinar língua.
Para piorar, essas mesmas pessoas também saem acreditando
que existe “oração sem sujeito” e “sujeito oculto”, que existe uma “voz passiva
sintética”, uma “terceira pessoa do discurso”, uma diferença entre “adjunto
adnominal” e “complemento nominal”, acreditando que as palavras porém, todavia,
contudo são “conjunções adversativas”, e outros mitos e superstições que nossa
tradição gramatical insiste em preservar e que os cursos de Letras não se
empenham, como deveriam, em criticar e substituir por conceitos mais afinados
com a teorização e com a pesquisa científica contemporâneas. A probabilidade de
encontrar um recém-diplomado em Letras que saiba explicar, por exemplo, o que é
um fonema sem repetir o erro teórico de que se trata de um “som da língua” é
quase a mesma de encontrar uma agulha num palheiro. Mais desastroso ainda é
encontrar essa definição completamente equivocada na maioria dos livros
didáticos (escritos por pessoas formadas em... Letras).
Na grande maioria dos cursos, o único contato que o
estudante tem com a ciência da linguagem e sua história se dá através de uma
disciplina chamada “Introdução à Linguística” ou coisa parecida, muitas vezes
num único semestre, e que, frequentemente, se interrompe justamente onde
deveria
começar: no nascimento da Linguística moderna, inaugurada
pelos trabalhos de Ferdinand de Saussure (publicados em 1916...).
Com isso, quando se veem diante da tarefa de escolher uma
coleção de livros didáticos de português dentre as que lhe são oferecidas pelo
Ministério da Educação, essas pessoas quase sempre optam pelas coleções mais
conservadoras, menos desafiadoras, justamente as que recebem as avaliações menos
favoráveis da parte dos especialistas encarregados pelo Ministério de analisar
as obras didáticas disponíveis no mercado. E como poderia ser diferente se, em
sua formação acadêmica, esses professores jamais foram apresentades aos
critérios usados pelo MEC para avaliar livros didáticos, se jamais entraram em
contato com as teorias de ensino-aprendizagem de língua materna que sustentam
hoje em dia as políticas oficiais de educação linguística?
Além desses problemas que têm a ver com a própria
estrutura dos cursos de Letras, existem outros, mais amplos e muito mais
trágicos. E o mais grave deles se resume na seguinte frase, tirada de uma
notícia de jornal: Somente 25% dos brasileiros que têm entre 15 e 64 anos
dominam a leitura e a escrita, de acordo com resultados do 5º Inaf (Indicador
Nacional de Alfabetismo Funcional).
Em qualquer país que tivesse uma história educacional
diferente da brasileira, isto é, em qualquer país onde a educação fosse uma
verdadeira prioridade nacional, uma notícia como essa teria o efeito de um
terremoto de proporções arrasadoras. Mas o que estou dizendo? Em qualquer país
onde a educação fosse uma questão nacional de primeira ordem, uma notícia como
essa jamais seria publicada! E o pior é que essa notícia se refere aos
resultados do Inaf (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional) em sua edição
de 2005. Em 2012, com os novos dados do Inaf, a situação catastrófica descrita
permanece inalterada, sete anos depois: 75% dos brasileiros entre 15 e 64 anos
são analfabetos funcionais. A notícia foi publicada. Não aconteceu nenhum
terremoto e, pelo visto, ninguém se apavorou a ponto de merecer destaque na
imprensa. Afinal, a nossa imprensa só se preocupa em mentir e deformar a
opinião pública com histórias que ela mesma inventa e transforma em minisséries
ou novelas de sucesso.
O quadro absolutamente precário do alfabetismo no
conjunto geral da população brasileira se reflete também no conjunto menor do
nosso professorado. O desprestígio que vem acompanhando fielmente a profissão
docente nas últimas quatro ou cinco décadas — devido à degradação progressiva e
permanente das condições de trabalho e aos salários aviltantes — tem levado a
uma redução drástica do contingente de pessoas bem formadas, bem letradas e de
origem socioeconômica privilegiada (classes médias e médias altas) que querem
se dedicar ao ensino básico. Daqueles 25% de brasileiros com nível pleno de
alfabetismo, quantos estão hoje em sala de aula de escolas públicas?
Abandonados por essas camadas sociais, os cursos superiores voltados para a
formação de professores são procurados cada vez mais por pessoas originárias de
grupos sociais em que as práticas letradas (leitura e escrita) são muito
restritas, quando não são praticamente nulas. É o que podemos ler nesta outra
reportagem:
O professor formado pelas universidades brasileiras é
filho de pais que nunca foram à escola ou nem sequer completaram os quatro
primeiros anos do ensino fundamental. Vive em famílias com renda inferior a R$
1.800/mês e estudou sempre em escola pública. [...] O questionário
socioeconômico do provão de 2001 do Ministério da Educação mostra que os
formandos de cursos como pedagogia, letras, matemática, biologia, física e
química (os mais procurados pelos que pretendem ser professores) têm perfil
distinto dos que saem de cursos mais concorridos, como medicina, ou de oferta
mais comum nas faculdades, como direito e administração.
Esses números significam muita coisa. Significam que
esses estudantes têm um histórico de letramento muito reduzido: no ambiente
familiar, não convivem com a cultura letrada, não têm acesso a livros,
revistas, enciclopédias etc., não são falantes das normas urbanas de prestígio
(as mesmas que supostamente terão de ensinar a seus futuros alunos) e têm
domínio escasso da leitura e da escrita. Só na faculdade é que a maioria dos
estudantes de Letras vai ler, talvez pela primeira vez na vida, um romance
inteiro ou um texto teórico mais complexo. As pessoas que atuam em nossos
cursos superiores de Letras, porém, fazem de conta que esses estudantes são
ótimos leitores e redatores e despejam sobre eles, logo no primeiro semestre,
teorias sofisticadas, que exigem alto poder de abstração e familiaridade com a
reflexão filosófica, junto com textos de literatura clássica, escritos numa
língua que para eles é quase estrangeira. E assim vamos nos iludindo e iludindo
os estudantes.
O resultado, volto a insistir, é que grande parte dos
futuros professores de português saem diplomados sem saber linguística, sem
conhecer a tradição gramatical, sem saber teoria e crítica literária e sem
conseguir escrever adequadamente um texto de qualquer gênero mais monitorado.
Todos os dias, eu recebo mensagens de formandos de vários pontos do país que me
pedem sugestões de temas e de leituras para seus trabalhos de conclusão de
curso.
Alguns até me enviam seus projetos: são textos repletos
de erros primários de ortografia, pontuação, sintaxe, vocabulário, com frases
truncadas e desconexas, além de abordagens teóricas pobres, superficiais,
quando não distorcidas, reveladoras das grandes dificuldades de leitura e
compreensão de textos teóricos mais densos. É assim que essas pessoas chegam ao
final do curso, e suas monografias, mal escritas, sem nenhum rigor teórico ou
metodológico, são aprovadas alegre e irresponsavelmente por seus (supostos)
orientadores. E a coisa prossegue no Mestrado e no Doutorado, onde são
aprovadas dissertações e teses que não poderiam servir nem como trabalho de
disciplina de graduação.
O problema, é claro, não está no fato de acolhermos na
universidade pessoas vindas das camadas mais desfavorecidas da população. Ao
contrário, isso tem de ser amplamente comemorado. O problema é não oferecermos
a essas pessoas condições de, primeiramente, se familiarizarem com o mundo
acadêmico, que é totalmente estranho para elas, por meio de cursos intensivos
(e exclusivos) de leitura e produção de textos, de muita leitura e muita
produção de textos, para só depois desses (no mínimo) dois anos de preparação
elas poderem começar a adentrar o terreno das teorias, das reflexões
filosóficas, da literatura consagrada. É urgente a necessidade de letrar os
estudantes de Letras que estão entre os menos letrados da universidade! É por
isso que as salas de aula do ensino básico estão ocupadas por professoras e
professores que, mal sabendo ler e escrever adequadamente, não poderão
desempenhar sua principal tarefa: ensinar a ler e a escrever adequadamente!
Eu fiz uma pesquisa sobre como escrevem as professoras e
professores de português do Distrito Federal. Coletei centenas de textos escritos
por essas pessoas e o que tenho em meus arquivos é uma demonstração concreta de
tudo o que falei até agora: mais de 80% de textos incompreensíveis, sem os
requisitos mínimos de coesão e coerência, repletos de erros ortográficos, de
pontuação, de concordância e por aí vai. Se assim escrevem os docentes, como
podemos esperar que seus alunos possam aprender a escrever?
Por isso, aproveito esse momento em que estou falando
diretamente aos estudantes de Letras para pedir que vocês se conscientizem de
todos esses graves problemas que são, como sempre, problemas de ordem política
e que precisam de uma solução política. Organizem-se, reivindiquem seus
direitos, exijam uma transformação radical na estrutura mesma do curso, a
começar pelo nome, que é uma vergonha para qualquer curso que pretenda ter uma
natureza minimamente científica. Exijam que a universidade ensine a vocês o que
vocês precisam aprender para atuar em sala de aula. E exijam também condições
de trabalho dignas para nossos professores, salários decentes, investimento
contínuo e crescente na educação. Não adianta nada o Brasil ser a 7a economia
do mundo capitalista e ocupar ao mesmo tempo o posto número 65 no índice de
qualidade de educação estabelecido pelas Nações Unidas. Estamos bem atrás da Argentina,
do Chile e até mesmo da Bolívia, o país mais pobre da América do Sul.
O Brasil tem avançado muito nos últimos dez anos. Mas
esses avanços foram conseguidos a duras penas, por meio de um reformismo social
aliado a um pacto conservador. No campo da educação, as coisas estão
estagnadas. Há mais de dez anos o índice de alfabetismo funcional não se move:
75% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são analfabetos funcionais. E se nós,
comprometidos com a educação, não fizermos nada, certamente não será esse pacto
conservador que vai fazer. Obrigado.
Postado na Comunidade Virtual da Linguagem (CVL) http://tech.groups.yahoo.com/group/CVL pela Profa. Valesca Brasil Irala em 23/11/2012.